Renata Camargo
Autora do livro "Ações afirmativas à brasileira: necessidade ou mito?",
Roberta Fragoso Kaufmann é uma crítica do sistema de cotas e signatária
da Carta dos 113, abaixo-assinado encabeçado por "anti-racistas contra
as leis raciais", entregue aos ministros do Supremo Tribunal Federal
(STF). No livro, ela faz um estudo comparativo entre as políticas de
cotas no Brasil e nos Estados Unidos.
Procuradora de Justiça no Distrito Federal, Roberta diz que o modelo em
discussão não resolve o problema, é inconstitucional e pode deflagrar
no país uma "discriminação reversa".
"A adoção de cotas estimula uma discriminação reversa, em que um grupo
de pessoas, no caso, os estudantes que tentam ingressar nas
universidades públicas, sofre o ônus. Vivemos em uma sociedade onde o
preconceito não é escancarado. As pessoas que são racistas têm vergonha
de dizer que o são. Conseguimos superar a escravidão sem ter uma
sociedade com ódio racial. Implementar raça como fator de segregação
pode acabar com esse frágil equilíbrio", considera.
Segundo ela, a adoção do sistema de cotas sob a perspectiva de
reparação histórica é um equívoco. "Por que os brancos pobres de hoje
devem pagar pela escravidão que foi aplicada no Brasil?" Como
alternativa, ela sugere a distribuição de bolsas de estudos em
cursinhos pré-vestibulares ou em faculdades para os estudantes mais
pobres.
Para a procuradora, falta um recorte social ao projeto de lei que
estabelece a adoção de cotas nas universidades. "Essas cotas favorecem
que negros ricos entrem na universidade."
Veja a íntegra da entrevista concedida por Roberta Fragoso Kaufmann ao
Congresso em Foco:
Congresso em Foco – O percentual de 50% das vagas nas universidades
reservadas no PL 73/1993 para alunos da rede pública de ensino é justo?
Roberta Fragoso Kaufmann – Não. O modelo de cotas brasileiro é uma
cópia do modelo norte-americano. Nem nos Estados Unidos, país onde todo
esse debate de cotas raciais surgiu, as leis de reserva de vagas foram
estendidas à educação. Estamos importando um modelo para uma questão
que jamais foi aplicada. E o Brasil faz cópias sem as alterações
necessárias. A reserva de vagas em seleções públicas é
inconstitucional, pois fere os princípios da igualdade e da
proporcionalidade.
Em sua opinião, que malefícios as cotas trazem para a sociedade?
A adoção de cotas estimula uma discriminação reversa, em que um grupo
de pessoas, no caso, os estudantes que tentam ingressar nas
universidades públicas, sofre o ônus. Vivemos em uma sociedade onde o
preconceito não é escancarado. As pessoas que são racistas têm vergonha
de dizer que o são. Conseguimos superar a escravidão sem ter uma
sociedade com ódio racial. Implementar raça como fator de segregação
pode acabar com esse frágil equilíbrio.
Mas a cota não seria uma possível solução para resolver a histórica
dívida social e racial que o Brasil tem com os negros e indígenas?
A idéia básica das ações afirmativas não é buscar a reparação
histórica. O principio elementar da responsabilidade civil diz que só
pode pagar pelo dano quem cometeu o dano. Essa questão de dizer que
vamos impor cotas porque é uma reparação histórica é falsa. Por que os
brancos pobres de hoje devem pagar pela escravidão que foi aplicada no
Brasil? O argumento da política compensatória agride a responsabilidade
civil. Como alguém que é contra a escravidão deve pagar por isso?
Pode-se até fazer ações afirmativas, mas não por cotas. Elas impõem o
ônus para parcela da população que não é culpada.
Mas, com mais remanescentes de escolas públicas nas universidades, o
quadro de exclusão social e racial não mudaria?
A política afirmativa de cotas no Brasil é muito simbólica. É feita
para passar a imagem de que o Poder Legislativo está preocupado com a
questão. Mas essa política não resolve o problema. Ela é uma política a
custo zero, não há aumento de vagas nas instituições públicas de ensino
superior ou oferta de bolsas de estudo.
O ingresso de estudantes cotistas pode diminuir o nível acadêmico das
universidades?
O problema não é esse. O nível acadêmico termina se equivalendo, pois
os professores acabam exigindo, e os alunos têm que correr atrás. O
problema não é a universidade ter que lidar com alunos sem base. O
problema é a inconstitucionalidade que se instaura no processo
seletivo, no acesso à universidade. O sistema de cotas é excessivo.
Qual a avaliação da senhora a respeito do critério da autodenominação
para definir a raça?
O fato de ser negro no Brasil é muito amplo, pois somos o país mais
miscigenado do mundo. Nos Estados Unidos, as ações afirmativas para
negros conseguem ser aplicadas porque há a regra de uma gota de sangue.
No Brasil, é muito complicada essa definição. Se fosse pelo critério
norte-americano, seríamos 90% de negros. Ainda assim, a autodenominação
é muito falha. Leva a casos como o dos irmãos gêmeos da Universidade de
Brasília em que um foi escolhido para concorrer às cotas e outro não.
Instituir comissões para dizer se a pessoa é afrodescendente é um
retrocesso. Que legitimidade tem comissões como essas? Querer que uma
terceira pessoa diga a que raça eu pertenço é uma política nazista.
Isso é um absurdo num sistema que tenta dar uma identificação objetiva
para um critério que nunca foi objetivo.
Ainda que seja contra as cotas, a senhora acredita que se deve adotar o
critério de limite de renda em um sistema de reserva de vagas para
escolas públicas?
No Brasil, a idéia de raça e classe social tem que ser relacionada. Dar
preferência a negros de classe média em detrimento do branco pobre não
justifica. Esses projetos de lei de cotas não estipulam o recorte
social, não especificam a renda. As escolas militares, por exemplo, são
escolas públicas. Tem muita gente rica que estuda em colégio militar.
Em Recife, Pernambuco, há vários colégios de aplicação, que são escolas
federais públicas, que funcionam dentro das universidades. Esses
colégios são excelentes. Aí lhe pergunto: o fato de ser 50% das vagas
para alunos de escolas públicas reflete o recorte social do país? Não.
Essas cotas favorecem que negros ricos entrem na universidade. Além
disse, deve-se considerar que cursos como Matemática, Música e Letras
têm presença maciça de estudantes afrodescendentes. Já cursos de
Medicina e Odontologia há uma menor participação de negros, pois os
materiais para seguir o curso são caríssimos.
Em vez de criar cotas, o governo não deveria melhorar o ensino público?
Sem dúvida. Se quisessem mesmo resolver o problema, fariam
investimentos maciços na educação de base. Ou, até mesmo, ofereceriam
bolsas atreladas a políticas de auxílio para quem precisa.
Que outras ações afirmativas deveriam ser adotadas?
Políticas afirmativas de bolsas de estudos em cursinhos
pré-vestibulares, ou bolsas para permanência na universidade. Quando se
faz uma ação afirmativa genérica, diminui-se o ônus para um grupo
específico.
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