Renata Camargo
O Plenário da Câmara deve votar nesta semana a regulamentação do
sistema de cotas em instituições públicas federais de ensino superior.
A proposta em discussão reserva metade das vagas dessas universidades
para alunos de escolas públicas e garante prioridade para negros e
índios. A distribuição seria feita de acordo com a proporção de negros
e índios em cada estado.
Parlamentares a favor da proposta estão otimistas quanto ao futuro do
projeto. O presidente da Frente em Defesa da Igualdade Racial, deputado
Carlos Santana (PT-RJ), acredita que a aprovação é irreversível. "A
base do governo está unida para votar a favor e na Câmara somos
maioria", avalia.
Santana, no entanto, reconhece que ainda há necessidade de se chegar a
um consenso em relação ao tema. O parlamentar afirma que há uma
oposição silenciosa que não admite a adoção de políticas de reserva de
vagas. "Os opositores às cotas não se manifestam", alega.
A Frente Parlamentar em Defesa da Igualdade Racial é formada por 227
dos 513 deputados que compõem a Câmara. Um número considerável, ainda
que não indique a real proporção de parlamentares que defendem esses
interesses. O item foi incluído na pauta desta semana por decisão dos
líderes partidários.
Veja argumentos favoráveis às cotas raciais
Veja argumentos contrários às cotas raciais
Porém, poucos parlamentares admitem ser contrários à política de ação
afirmativa. Uma das poucas vozes a se levantar contra as cotas na
Câmara, o deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ) avalia que a votação do
projeto ainda dará pano pra manga. Sempre polêmico, ele ameaça
pressionar a Casa a votar uma proposta de sua autoria que prevê a
reserva de 50% das vagas da Câmara e do Senado para negros. A
proposição foi apresentada por ele em tom de deboche, já que o próprio
deputado já declarou que votará contra a própria sugestão.
"Vou apensar o meu projeto de cotas também. Se aprovarem cotas em
universidades, quero metade de afrodescendentes dentro do Congresso",
desafia. "Esse projeto de reserva de vagas nas universidades é
inconstitucional e imoral. Eu não admito", completa.
Proporcionalidade
Apresentado em 1999, o Projeto de Lei 73, de autoria da deputada Nice
Lobão (DEM-MA), passou pela Comissão de Educação e Cultura, onde
recebeu o parecer do relator, o deputado Carlos Abicalil (PT-MT). Em
seu substitutivo, o relator prevê a possibilidade de se atingir o
percentual de cotas de maneira gradativa.
Na reserva de 50% das vagas para estudantes que tenham cursado
integralmente o ensino médio em escolas públicas, serão reservadas
subcotas para descendentes de negros e indígenas.
Em cada seleção, deverá ser preenchida uma proporção mínima para essas
etnias, baseada no último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), em que as pessoas se autodeclaram brancas, pardas,
negras e indígenas, conforme a unidade federativa da instituição. Ou
seja, o número de vagas para negros seria muito maior na Bahia, onde os
negros constituem grande maioria, do que em Santa Catarina, estado com
menor percentual de negros, segundo o IBGE.
Abicalil acredita que seu substitutivo será aprovado com ampla margem
pelo Plenário, pois o texto obteve votação expressiva nas comissões de
Constituição e Justiça e de Educação e Cultura. "A proposição tem sido
amplamente aceita. Acredito que vai ser aprovado", avalia.
Uma das coordenadoras da frente parlamentar pela igualdade racial, a
deputada petista Janete Pietá (SP) está otimista em relação à aprovação
do projeto. Pietá afirma que a demanda da sociedade pela regulamentação
das cotas é grande.
"As cotas tratam diferentes como diferentes. Esse mecanismo
possibilitará que os que sempre estudaram em escolas públicas tenham
acesso à universidade", defende. "Sinto-me emocionada de conseguir
pautar uma agenda para tratar do tema", completa.
A deputada cobra, porém, que a Casa acelere as discussões sobre o
Estatuto da Igualdade Racial (PL 6264/05), considerada prioritária pela
Secretaria da Igualdade Racial. Entre outras mudanças, o Estatuto fixa
em 20% as cotas para negros nas universidades públicas e até nos
programas de TV. Além disso, amplia o conceito de liberdade religiosa,
em favor dos cultos afros, e institui o ensino da disciplina "História
da África e do negro no Brasil" nas escolas.
Diferentes na igualdade
O princípio da igualdade, levantado pelos defensores das cotas raciais,
é, justamente, o principal argumento das contestações dos que são
contra a reserva de vagas. Duas ações diretas de inconstitucionalidade
(Adin) a respeito do tema tramitam no Supremo Tribunal Federal (STF).
As ações contestam e pedem a anulação das cotas raciais instituídas no
Programa Universidade para Todos (ProUni) e a política de reserva
adotada nos vestibulares da Universidade Estadual do Rio de Janeiro
(Uerj).
A inconstitucionalidade da matéria é defendida por um grupo de
intelectuais, sindicalistas, empresários e militantes de uma do
movimento negro. Em abril, o grupo entregou aos ministros do STF a
chamada Carta dos 113, abaixo-assinado encabeçado por "anti-racistas
contra as leis raciais". Uma das signatárias é a procuradora no
Distrito Federal Roberta Fragoso Menezes Kaufmann.
A procuradora avalia que a reserva de vagas não só fere o princípio da
igualdade como também vai de encontro ao princípio da
proporcionalidade. "Ele estimula uma discriminação reversa, em que um
grupo de pessoas, no caso, os estudantes que tentam ingressar nas
universidades públicas, sofre o ônus", defende (veja os argumentos da
procuradora).
Autora do livro Ações afirmativas à brasileira: necessidade ou mito?,
Roberta Kaufmann faz uma análise histórico-jurídica comparando as
políticas afirmativas para negros nos Estados Unidos e no Brasil. "O
Brasil fez cópias de modelos norte-americanos sem as alterações
necessárias e implementa essas ações de maneira bastante precipitada",
considera.
A avaliação da procuradora é refutada pelo frei franciscano David
Raimundo dos Santos, assessor nacional da rede de cursinhos
pré-vestibulares comunitários Educafro e um dos principais líderes do
movimento negro no Brasil. Para ele, a política afirmativa começa
tardiamente no país. Além disso, acrescenta, a inconstitucionalidade
das cotas é um argumento falso. "Dizem que fere o princípio da
igualdade. Mas essa igualdade é falsa, mentirosa e injusta, beirando
quase a corrupção a favor das elites", alega.
Segundo o religioso, a adoção do sistema de cotas está se consolidando
no país e alcançando grupos que sempre foram relegados à margem da
sociedade pelo Estado. "Hoje já temos cotas para negros, indígenas,
alunos da rede pública e portadores de necessidades especiais",
comemora (veja os argumentos do frei).
Convergência única
Atualmente 79 instituições de ensino superior adotam algum tipo de
cotas no país, de acordo com dados da Educafro. A primeira adoção de
reservas foi feita pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj),
em 1999, quando a Educafro entrou com representação no Ministério
Público Estadual para que o governo do Rio e a reitoria da Uerj
explicassem as razões da ausência de negros na universidade.
As discussões sobre ações afirmativas para reserva de vagas para negros
e indígenas esbarra, entre outros problemas, no critério da
autodenominação em que a própria pessoa se identifica como
afrodescendente. No movimento negro, tem prevalecido o entendimento de
que vale a autodefinição do estudante. Mas o critério tem sido
contestado por segmentos contrários à política de cotas, que alegam que
o método abre espaço para fraudes e deixa em segundo plano a questão
social.
Um dos poucos pontos de convergência entre defensores e críticos das
cotas se dá exatamente na conclusão de que o nível acadêmico de alunos
que ingressam na universidade por meio da reserva de vagas é igual ou
superior a de estudantes que entram pelas vias tradicionais.
Leia ainda:
Roberta Kaufmann: "Cotas estimulam discriminação reversa"
Frei David: "As cotas estão desmascarando o vestibular"
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