sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Fw: As contradições por dentro da Grande Muralha

URL: http://congressoemfoco.ig.com.br/Noticia.aspx?id=23684

Renata Camargo*

Purgatório da beleza e do caos. A cantora Fernanda Abreu poderia
facilmente transportar os versos do seu hit Rio 40 Graus para o
Oriente. Mas não pense no Japão. Brasil e China têm mais em comum do
que o fato de serem apontados como potências emergentes, ainda que os
dragões chineses estejam milhares de quilômetros à nossa frente nessa
corrida pelo crescimento econômico. Ambos ostentam contradições do
tamanho de suas dimensões continentais.

Novo gigante da economia mundial, a China atrai agora olhares curiosos
de todos, mesmo de quem jamais se interessou por sua história. País de
1,3 bilhão de habitantes, faz de sua capital Beijing (Pequim) palco da
Olimpíada mais cara da história. Investimentos de US$ 40 bilhões numa
nação onde um em cada oito habitantes vive em condições de pobreza.

Uma mostra da grandiosidade chinesa ganhou o mundo na cerimônia de
abertura dos Jogos Olímpicos, realizada com beleza e emoção ontem. Com
precisão e arte, eles fizeram questão de frisar a invenção do papel, a
ida do homem à lua, a descoberta da pólvora e da bússola. Os milenares
chineses têm orgulho do que são e batem o pé: "a pólvora é nossa
invenção, e não dos europeus", como os livros de história ocidentais
insistem em frisar.

Em meio a uma viagem de sete meses por 17 países dos cinco continentes,
desembarquei na China no dia 24 de outubro de 2007. Por lá estive por
quase um mês. Já naquela ocasião tudo o que se via por ali era "about
olympics". As fachadas, todas em reforma, as ruas, as construções, os
mistérios em torno do estádio megalomaníaco – que na época era
"surpresa" vedada a turista –, tudo o que se respirava na China
cheirava a jogos olímpicos. Uma verdadeira revolução infra-estrutural e
cultural, esperada desde o início dos anos 1990, quando o país tentou
sem sucesso sediar os jogos de 2000.

As mudanças não se restringiram ao espaço físico. O governo chinês
levou a sério as campanhas de "bom comportamento". Não cuspa no chão.
Não escarre. Não fure fila. Não empurre ao entrar no metrô. Não
pergunte quanto o estrangeiro ganha, pois os ocidentais não gostam de
falar sobre isso (às vezes, me questiono como seriam as políticas de
"bom comportamento" para os brasileiros). Eis algumas das frases
estampadas nos milhares de cartazes espalhados a ditar um peculiar
código de boas maneiras.

O idioma, como esperado, revelou-se uma barreira. Poucos falam inglês
na China. Ainda que poucos naquele país signifiquem muitos. Tudo isso
tornava a leitura impossível, a comunicação verbal limitada e a
expressão corporal um desafio constante. O que os ouvidos perdiam, no
entanto, os olhos captavam e vice-versa.

Era um trabalho em equipe para conseguir traduzir aquela realidade. As
percepções sobre Beijing, por exemplo, são as mais diversas. A cidade é
deslumbrante do início ao fim, tomada, no entanto, por uma poluição
incondicional e desumana e uma febre de consumo assustadora. A cidade
das bicicletas e dos arranha-céus luxuosos revela a China moderna, em
contradição com o interior, pobre, também poluído, mas distante da
febre de consumo.

A maior mudança das últimas décadas no país é, sem dúvida, a recente
adoção de filosofias de vida, hábitos de consumo e modos de produção
completamente capitalistas diante de uma herança comunista da Revolução
Cultural de Mao Tsé-Tung. A China hoje exala esse rito de passagem e
isso pode ser visto no cotidiano. É a transição do regime comunista
para o "consumista", como bem traduziu minha irmã que me acompanhava na
viagem.

Impossível passar incólume, por exemplo, pela parte central da cidade
Xian, antiga capital chinesa, e ver suntuosos shoppings para
milionários próximos uns dos outros. Nas vitrines, as melhores grifes
européias e americanas, como Prada, Gucci, Giorgio Armani, expostas de
forma tão sedutora que nem a "popular" Nova Iorque ousaria: ao som de
piano, tocado por uma bela jovem chinesa, que às 10h da manhã vestia um
longo vestido preto.

Vazios, os shoppings estavam ali, lindos, assustadoramente lindos.
Naquele contexto, a pergunta era simples: onde estão os endinheirados
para manter aqueles gigantes? Seriam eles os mesmos que controlam os
canais de comunicação estatais e que determinam a censura a 10% dos
sites em Beijing?

A economia do país vai bem, com invejáveis taxas de crescimento de
10,8%, em contrapartida aos nossos singelos quatro por cento. Nas ruas
das cidades grandes, o trânsito de pessoas nas calçadas de áreas
comerciais nem se compara ao volume de gente enfurnada em centros de
compras. Os prédios que trazem duas, três, quatro ou mais escadas
rolantes abaixo do solo, todos em vãos abertos, dando acesso a andares
que parecem feiras, são, no mínimo, intrigantes.

Enquanto isso no campo, o esvaziamento. A China é o país como a maior
migração da zona rural para a cidade. A agricultura e os produtos
manufaturados disputam as maiores fatias do mercado. Mas as condições
de vida no campo fazem com que as pessoas busquem oportunidades na
cidade.

As contradições chinesas, assim como as brasileiras, parecem não caber
mais no tamanho de seus territórios. Na China estão seis mil anos de
história. Ao mesmo tempo em que ainda há na cultura chinesa a
influência de valores como família, moral e autodomínio, o
individualismo ocidental avança em velocidade supersônica. O país é
superlativo em todos os sentidos. Sobretudo em suas contradições, que,
independentemente, de políticas de bom comportamento e reformas em
fachadas, saltam aos olhos no momento em que todo o mundo se volta para
o interior das Grandes Muralhas.

* Renata Camargo é jornalista, especializada em Desenvolvimento
Sustentável e Direito Ambiental, e repórter do Congresso em Foco.
Esteve na China em outubro de 2007, durante viagem de sete meses por 17
países.

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