quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Fw: Estados Unidos da America: o pais onde o fracasso e recompensado

Estados Unidos da América: o país onde o fracasso é recompensado

Na atual crise financeira, o modelo de capitalismo dos Estados Unidos
implodiu com um grande estrondo. Mas o governo Bush está tentando
extinguir as chamas com mais combustível, em vez de água, e quer que os
apostadores de Wall Street sejam recompensados pelo fracasso

Gabor Steingart
Em Washington (EUA)

Mais de cem anos atrás, o sociólogo alemão Georg Simmel criticou os
bancos por ficarem cada vez maiores e mais poderosos do que as igrejas.
A sua principal queixa - a de que o dinheiro é o novo deus dos nossos
tempos - ainda é ouvida nos dias de hoje. Se Simmel estava certo, e há
indicações de que de fato estava, a declaração teria que ser modificada
para coadunar-se com as circunstâncias atuais: nem todo mundo reza para
o mesmo deus.

Entre o grupo de adoradores de dinheiro, existem pelo menos três fés. A
primeira é a dos Puritanos, que carregam pacientemente o dinheiro deles
para as novas igrejas, esperando que ele se multiplique. O chinês
típico, por exemplo, deposita 40% dos seus rendimentos em bancos. Que
disciplina louvável! E há também os Pragmáticos. Estes poupam e
emprestam, mas somente nesta ordem; a poupança é o fator que limita a
ousadia deles. Esta linha é especialmente comum nos países germânicos,
nos quais o banco de poupança é o templo religioso.

Finalmente, temos a comunidade religiosa dos Desinibidos, que é
especialmente popular nos Estados Unidos. Os seus seguidores não se
acanham em admitir a falta de cautela, o desperdício extravagante e a
cobiça onipresente.

Eles chamam isto de "American way of life" ("estilo de vida
americano"). Os seus membros vivem no aqui e no agora, sem fazer
perguntas sobre o amanhã. Um empresta dinheiro ao outro, mesmo que o
dinheiro não lhes pertença. Em vez disso, eles tomam quantias
emprestadas com uma terceira pessoa, que prometeu conseguir o dinheiro
com um quarto indivíduo - e assim por diante.

Southampton: o início do rastro de evidências

Esta comunidade religiosa é a mais fervorosa de todas. Há algum tempo,
ela adotou a prática de tratar dinheiro antecipado como dinheiro real e
de entender desejo como realidade. Atualmente ela não conta mais com
nenhum fragmento de inibição.

Como todos sabiam que havia mais desejos do que dólares, o resultado
inevitável foi uma certa lacuna de financiamento, ou déficit.
Capitalismo sem capital - o núcleo audacioso desta inovação - não
poderia funcionar. Não há salvação terrena - pelo menos esta foi uma
conclusão quanto à qual o antigo Deus, aquele que carregou a cruz, e o
novo deus, o que traz cifrões nos olhos, poderiam concordar.

E, assim, o inevitável ocorreu: o big bang. Três entre cada cinco
bancos de investimento dos Estados Unidos perderam a independência, e
os outros dois ainda estão afundando. Dois bancos de hipotecas e uma
companhia de seguros encontram-se agora sob administração governamental.

O sistema financeiro global foi abalado, horrorizando os membros das
outras duas fés. Pode haver três religiões, mas só há um céu. Se este
cair, todos morrem.

Uma busca por evidências a fim de identificar os responsáveis deveria
provavelmente começar em Southampton, um reduto da elite endinheirada.
Nesta cidade, na parte leste de Long Island, perto da cidade de Nova
York, é possível presenciar o quanto a cobiça pode ser atraente.

Trata-se de um lugar no qual as opções de ações foram transformadas às
centenas em castelos de contos de fadas à beira-mar. Aproveitando-se
das brechas tarifárias, os gurus financeiros de Wall Street conseguiram
retirar os seus bônus da cidade mais ou menos intactos. Segundo a
legislação tributária dos Estados Unidos, a compensação na forma de
ações e garantias é taxada em menos da metade do índice mais elevado de
impostos. Como resultado, a taxa tributária que incide sobre os
rendimentos de muitos banqueiros é inferior àquela a que estão sujeitos
os salários das suas secretárias.

Como menos transformou-se em mais

Os donos destas mansões à beira-mar não estão lá neste momento, de
forma que uma investigação mais profunda requer uma viagem de trem até
Nova York. No arranha-céu de Midtown que abriga os escritórios do
Lehman Brothers, que está em processo de encerramento da sua história,
há muito o que descobrir a respeito da seqüência de eventos. Bilhões de
dólares foram emprestados a pessoas que não tinham crédito para que
elas adquirissem condomínios e casas de pouco valor. No jargão alegre e
cínico dos banqueiros, esse tipo de empréstimo foi batizado de "NINA",
acrônimo de "No Income, No Asset" ("Sem renda, sem bens").

Mas mesmo assim as coisas andavam bem no mundo dos financiadores. O
aumento miraculoso da oferta de dinheiro contribuiu para que o preço de
imóveis subisse mais de 70% entre 2000 e 2006. A indústria conseguiu
obter lucros aumentando o risco. Pelo menos na folha de balanço, o
menos se transformou em mais.

Em tempos melhores, alguém poderia ter chamado os banqueiros de
empreendedores; atualmente, eles são chamados de irresponsáveis. Antes
mesmo do surgimento da expressão banco de investimentos, Karl Marx
sabia como as duas coisas estavam vinculadas: "O capital tem tanto
horror à ausência de lucro ou de um lucro muito pequeno quanto a
natureza tem horror ao vácuo. Com um lucro apropriado, o capital é
despertado; com 10% de lucro, ele pode ser usado em qualquer lugar; com
20%, torna-se vivaz; com 50%, fica positivamente ousado; com 100%, ele
esmagará com os pés todas as leis humanas; e com 300%, não existe crime
que ele não se disponha a cometer, ainda que se arrisque a ir para a
cadeia".

A fé de Paulson

Agora o rastro conduz de Nova York a Washington, onde o secretário do
Tesouro dos Estados Unidos, Henry Paulson, tem o seu gabinete na
Avenida Pensilvânia. O seu ministério é tão importante que há um portão
ligando o subsolo do Departamento do Tesouro ao da Casa Branca. A
atitude adotada por Paulson em relação aos bancos foi a de deixá-los
atuar livremente, e ele agora pretende assumir os prejuízos dessas
instituições. Para os altos círculos financeiros, ele tornou-se algo
como uma garantia extra. O objetivo dele é eliminar a ameaça de cadeia
- mas não a cobiça.

Paulson já foi um banqueiro de Wall Street. Ele é um homem de boas
maneiras e princípios firmes. Em tempos normais, ele tem fé no mercado,
em Deus e em George W. Bush. Mas em tempos como estes, ele prefere
depositar a sua fé no governo, no contribuinte e em Bush.

Ao contrário do que muito se anunciou, Paulson não pretende utilizar as
rendas obtidas com impostos para financiar o pacote de socorro aos
bancos. Em vez disso, a intenção dele é tomar novos empréstimos de
bilhões de dólares em nome do Tesouro dos Estados Unidos. "Detesto o
fato de termos que fazer tal coisa, mas isto é a melhor do que a única
outra alternativa", disse ele na semana passada. O presidente já deu o
seu sinal de aprovação.

É isso o que acontece com as comunidades religiosas quando sofrem
pressões: elas tornam-se ainda mais fervorosas. A idéia é que o mesmo
tipo de pensamento de curto prazo que provocou o desastre vá agora pôr
um fim a esta situação calamitosa. O governo está tentando extinguir o
fogo com combustível, e não com água. Na verdade, este é exatamente o
mesmo combustível que deu início ao incêndio em Wall Street: dinheiro
emprestado.

A única diferença é que os novos empréstimos não virão do sexto, do
sétimo ou do oitavo membro da comunidade religiosa. Eles serão
coletados de todos os contribuintes. Isso significaria o fim da
separação entre igreja e Estado, sendo que Wall Street se tornaria a
religião nacional.

Os pontos em comum com as outras duas comunidades religiosas já estão
desaparecendo. Coisas que na época da tradicionalmente honrada economia
de mercado eram consideradas inseparáveis - como valor e consideração,
salário e desempenho, risco e responsabilidade - estão sendo agora
rasgadas em nome do governo. O capitalismo atualmente exibido pelos
Estados Unidos é uma versão rota e degradada daquilo que costumava ser.

As ações dos políticos estão amplificando, em vez de mitigar, os
efeitos do fracasso econômico. O capitalismo no estilo norte-americano
ainda não morreu, mas está simplesmente preparando o seu próprio
falecimento. A história destes dias é a história de uma morte que já
foi anunciada. O que nos leva a Miss Marple.

Começou um jogo perigoso com o tempo

A detetive amadora imaginada por Agatha Christie, baseada na avó da
escritora, era equipada com algo mais do que apenas um senso de humor e
uma compreensão da natureza humana. Ela também tinha experiência em
relação a coisas óbvias que ninguém acredita serem possíveis - até que
elas aconteçam. No seu romance de 1950, "A Murder is
Announced" ("Convite para um Homicídio"), Christie olhou para o futuro
de maneira cômica.

A história transcorre mais ou menos assim: certa manhã, os cidadãos
leram a seguinte mensagem nos classificados de um jornal local: "Um
assassinato foi anunciado e ocorrerá na sexta-feira, 29 de outubro, em
Little Paddocks, às 18h30. Amigos, por favor aceitem isto, a única
intimação". Na hora designada, metade da vila reuniu-se na casa onde o
assassinato supostamente aconteceria. A advertência é tratada como uma
piada frívola, que ninguém desejaria rejeitar. Serve-se sherry aos
presentes. O grupo é tomado por um pânico coletivo. Exatamente às
18h30, as luzes apagam-se.

"Não é maravilhoso?", diz uma voz feminina. "Estou trêmula".

Quando as luzes voltam a acender-se - para a surpresa de todos - um
crime foi cometido. E agora nós, assim como os presentes na sala em
Little Paddocks, estamos de pé, sussurrando, tomados pelo medo
coletivo, aguardando para ver o que acontecerá a seguir. E ninguém
acredita seriamente que um crime de verdade está prestes a ocorrer.

"Todos estavam em silêncio e ninguém se movia. Todos olharam para o
relógio... Quando a última nota terminou, todas as luzes apagaram-se.
Murmúrios de alegria e gritinhos femininos de satisfação foram ouvidos
no escuro. 'Está começando', gritou a senhora Harmon, extasiada".

Um futuro vendido

Quem quer que espere receber um alerta antecipado deveria simplesmente
expandir o seu campo de visão enquanto as luzes permanecerem acesas.

As companhias de cartão de crédito dos Estados Unidos não estão em uma
situação significativamente melhor do que os bancos. Elas também
venderam o futuro e até mesmo uma parcela do período posterior a ele.

A indústria automobilística norte-americana também se encontra
seriamente combalida e tem dificuldades para estender as suas linhas de
crédito no mercado aberto. A indústria perdeu mais de 300 mil empregos
desde 1999. Mas qual é o benefício disto se são os gerentes - e não os
trabalhadores - os culpados pela crise? A enorme conta dos Estados
Unidos com a compra de petróleo - cerca de US$ 500 bilhões (? 345
bilhões) - é atualmente paga com dinheiro emprestado pela China. A cada
dia útil, a dívida externa dos Estados Unidos aumenta em quase US$ 1
bilhão (? 690 milhões).

Provavelmente a pílula mais amarga de engolir nos Estados Unidos de
hoje é o fato de os lares privados não estarem administrando as suas
finanças de maneira melhor do que os executivos de corporações. Estes
lares vêem o reflexo de suas imagens nos banqueiros de Wall Street, e
não uma espécie de figura destorcida de si próprios. "De fato, não
conheço nenhum país no qual o amor pelo dinheiro tenha se estabelecido
tão fortemente no sentimento dos homens", observou Alexis de
Tocqueville 170 anos atrás.

A conversa há muito necessária entre o governo e os governados ainda
não se materializou. Essa teria que ser uma conversa a respeito da
relação entre a economia e os valores, sobre a recuperação daquilo que
se perdeu, em vez de sobre expansão. A palavra frugalidade - que
desapareceu do vocabulário dos Desinibidos - deveria ser reintroduzida.

Mas não há sinal de que nada disso esteja acontecendo. Os Estados
Unidos de hoje são muito estadunidenses para sobreviverem na sua forma
atual. Mas os Estados Unidos atuais são também muito orgulhosos para
perceberem isto. Os fiéis dificilmente permitiriam que alguém os
convertesse.

Assim, a nossa compreensão dos acontecimentos continua ficando cada vez
menos clara. Teve início um jogo perigoso com o tempo.

"O ruído de duas balas sacudiu a complacência da sala. Subitamente, o
jogo não era mais um jogo. Alguém gritou... 'Luzes'. 'Não consegue
encontrar um isqueiro?'...'Oh, Archie, quero sair daqui'".

http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/derspiegel/2008/10/01/ult2682u958.jhtm


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