segunda-feira, 31 de março de 2008

Artigo: TV digital: melhores imagens e só

Ela primeiro chegou a São Paulo. Oficialmente no dia 2 de dezembro de
2007, com direito à festa no arraial paulistano e a presença do
presidente Lula. Daqui a três semanas, será a vez do Rio de Janeiro;
provavelmente no dia 20 de abril, por desejo da Rede Globo, que
pretende aproveitar seu aniversário para estender os recursos da TV
digital de alta definição, vulgo HDTV, aos 17 municípios da Região
Metropolitana do Rio. Em São Paulo, as redes inauguraram o sistema
juntas. No Rio, a Globo sairá na frente, sem que se saiba em que datas
a Bandeirantes, o SBT, a Record e a Rede TV! darão tchau ao analógico.

Mas parece certo que, ainda neste semestre, será possível apreciar com
maior nitidez e melhor sonoridade a brejeirice de Márcia Goldschmidt e
Sonia Abraão, a breguice de Hebe, Gugu, Otavio Mesquita e Raul Gil, os
ademanes de Gasparetto e os púlpitos e pátios dos milagres de todos os
bispos e pastores da Rede TV! e da Record. Pérolas aos porcos.

Para quê imagens com maior definição se o que elas em geral exibem não
merece mais do que um jurássico televisor em preto & branco? Para nos
emburrecermos letalmente diante de um televisor ("amusing ourselves to
death", na feliz expressão de Neil Postman sobre a vampirização da
humanidade pelo vídeo), a transmissão analógica basta. Se o olhar do
observador altera o objeto observado, o foco perfeito não melhora a
qualidade intrínseca do objeto focalizado.

A questão fundamental, portanto, não diz respeito a monitores de plasma
ou cristal líquido, com 1.080 linhas, miríades de pixels e conversores
integrados ou periféricos, mas a formas & conteúdos tão ou mais
ultrapassados que um tubo de raios catódicos.

Com raríssimas e escasseantes exceções, a televisão brasileira anda
muito ruim, quase italiana, só um pouco acima da mexicana.
Tecnicamente, avançamos bastante; chegamos até a impor um padrão
internacional de teledramaturgia, mas até nessa seara estacionamos; ou
melhor, regredimos, caindo num esquematismo, numa mesmice de dar dó. E
que até os comerciais já contaminou, sobretudo os de automóveis,
cervejas e produtos de beleza, a maioria deplorável.

Suposta salvação da lavoura, a TV a cabo e por satélite, no Brasil,
revelou-se uma decepção. Pouco importa que, devido ao número
insatisfatório de usuários, nossa TV paga não possa ter cumprido suas
promessas ("Programas exclusivos!", "Sem intervalos comerciais!",
"Somente filmes legendados!" etc.) nem baixado os preços da assinatura
a níveis mais compatíveis com o bolso do brasileiro médio. A Sky fala
muito em interação com o telespectador, mas não lhe possibilita montar
um pacote razoavelmente ajustado às suas preferências.

Mesmo o cliente que, persuadido a contratar um pacote de 98 canais,
optou por outro de, digamos, 78, para evitar uns 20 sem o menor
interesse para ele, teve de engolir um chorrilho de inutilidades. Ou
levamos o filé de 200 gramas de carne e 30 quilos de osso, ou nada
feito.

Experimente abrir mão dos sete ou oito canais de programação infantil,
perfeitamente dispensáveis para quem não tem filhos. Se conseguir
livrar-se de todos eles, na certa perderá outros de seu particular
interesse, compulsoriamente atrelados aos puericanais recusados.

Zapeando pela grade da Net ou da Sky Net+Directv, um assinante não
vidiota se detém, no máximo, em dez canais. O que não quer dizer que na
maioria deles permaneça mais de alguns segundos, tempo suficiente para
uma estimativa do tédio ou do insulto à inteligência que o aguarda. Sei
de gente (com uma quantidade razoável de neurônios e afeita a
diversificadas formas de lazer & cultura) que salta direto da Globo
para os dois canais Sportv, desprezando cerca de 34 (trinta e quatro!)
emissoras intermediárias, invariavelmente enxundiadas por cultos
religiosos, camelôs eletrônicos, videoclipes de rock, fofoquinhas de
celebridades, desenhos desanimados e leilões de gado, jóias e ouropéis.

Ok, o canal de golfe é bônus. O Speed também. Bônus, do latim
"bônus" (bom), é sinônimo de prêmio e vantagem. Para quem despreza
golfe e veículos em alta velocidade, tais bonificações não são um
prêmio, mas uma usurpação de espaço. Nestes e noutros, ocupados por
canais como Managementv, Canção Nova, Terra Viva, LBV etc., poderiam
estar, franqueados ou com desconto, um ou dois HBOs, um Cinemax, um
Maxprime (que, aliás, está exibindo a melhor telessérie dos últimos
tempos, A Escuta).

Até por dever profissional, sou freguês assíduo da Globo News (e com
maior entusiasmo quando Ana Paula Couto comanda o Em Cima da Hora),
visitante bissexto do GNT (ele é de Vênus, eu sou de Marte, certo?),
freqüentador constante do Universal (por conta de House, Law & Order
S.V.U. e Monk), e, eventualmente da CNN. Ando cada vez mais alheio às
sessões dos Telecines, pois até o melhor deles, ex-Classics, adotou
nome mais elástico (Cult) para justificar os abacaxis que praticamente
passaram a monopolizar suas sessões.

Abandonei o Sony desde que de sua programação desapareceu o C.S.I. Las
Vegas, banido para o AXN. Assinei, esperançoso, o TCM, que já se
acomodou ao que Graciliano Ramos chamava de "gosto rombudo das massas",
atravancando seu horário nobre com as nostálgicas baboseiras (Chaparral
etc.) antes confinadas ao nicho vespertino. O Eurochannel costuma ser
um tédio à altura das cinematografias que representa. O Hallmark
Channel é uma tapeação, com a agravante de que não ensinaram ao locutor
que promove seus filmes a pronúncia correta de Hallmark: é "Rolmarque",
e não "Carimaqui", como ele persiste em dizer, como se estivesse nos
oferecendo uma nova variedade de sushi.

Como cobram R$ 200,00 de mensalidade por 93 canais, cada um custa em
torno de R$ 2,15 por mês, uma pechincha para quem usufrui de todos
eles. Para quem não tem o hábito de assistir a mais de 10 canais desse
pacote, a conta, no fim do mês, chega a R$ 20,00 por canal. Seria um
preço razoável se os 10 canais nos enchessem as medidas ― e, acima de
tudo, se ganhássemos em dólar, que, embora até aqui deliqüescente,
ainda vale quase o dobro do real.

Minto: nem assim. A Digital Cable de Nova York cobra US$ 61.50 por mês
por um pacote de 225 canais. Por cada canal, o assinante desembolsa
cerca de 27 centavos de dólar (mais ou menos 50 centavos de real).

Há muito virou pó a esperança de que, quanto mais assinantes a TV paga
amealhasse, maior qualidade poderia oferecer. Num país como o nosso,
apinhado de ignorantes, tal lógica não funciona. Aqui, quanto mais o
consumo de algo se horizontaliza, mais se amplificam a mediocridade e o
desleixo. A programação da Globosat maiamizou-se inteiramente,
inclusive por ser, em grande parte, comandada de Miami. Esto tiene un
precio. Até com chamadas em portunhol somos, ocasionalmente, agredidos,
quando não surpreendidos por chamadas e documentários com legendas em
espanhol, como o que o TNT exibiu há tempos sobre o ator Roger Moore.

As inopinadas alterações na localização de canais na grade, que a
inúmeros assinantes tanto irrita, são de somenos. Mais graves são as
insistentes reprises e os erros ditados pela incompetência dos
tradutores de narrações e legendas: erros crassos de português e
identificação (o cineasta Irving Rapper já virou "Ralph Rhaper"; o ator
James Garner ganhou um Gardner de sobrenome; a famosa delicatessen
nova-iorquina Balducci virou "Valduchi"; e acho que não preciso
esclarecer quem, num documentário sobre Shirley Temple, apareceu, nas
legendas, como "Adolphe Mangiou" e "Darry F. Sanik"). Por anos a fio,
em todo filme ou seriado policial aparecia um personagem chamado
Coroner. Coincidência ou falta de imaginação dos roteiristas
americanos? Não, ignorância dos nossos tradutores. Coroner não é nome
de gente, mas profissão: médico legista, figura onipresente em qualquer
intriga policial.

Volta e meia somos agredidos, nos rodapés da Sky, com batismos
apócrifos impostos a filmes antigos, cuja identificação exige uma certa
perícia da parte do telespectador, e também por qualificações absurdas,
como enquadrar uma comédia musical da Metro na categoria "drama de
tribunal" (sim, era "Les Girls", de George Cukor). Nem os mais
ridículos títulos aqui dados a filmes estrangeiros deveriam ser mudados
pelo capricho ou pela ignorância de nossos programadores. Nem mesmo
East of Sumatra, lançado no Brasil em 1954, com o inexplicável título
de Ao Sul de Sumatra, deveria ser corrigido pela Net.

Crescentemente nivelada por baixo, repetindo filmes ad nauseam (Quatro
Casamentos e Um Funeral, O Reverso da Fortuna, Legalmente Loura, Risco
Duplo, Homicídios Ocultos), a TV paga acabou se rendendo até ao filme
dublado, essa invenção fascista cujo incentivo deveria ser
expressamente proibido pelo Ministério da Educação. O antigo Telecine
Comédia foi rebaixado a Pipoca justamente para fomentar, com sua
programação dublada, o nosso contingente de analfabetos.

Legendas erradas, o ouvido experiente corrige. Mas as asneiras da
dublagem passam impunes. Só os muito espertos sacaram que a "mamãe
assobiadora", por quem um dos protagonistas da versão dublada de Uma
Loura Por Um Milhão (Fortune Cookie, de Billy Wilder) jura como quem
jura pela mãe mortinha, era ninguém menos que a veneranda Anna
Whistler, mãe do pintor James Whistler, celebrizada no famoso quadro
"Whistler's Mother", pintado por seu filho em 1871. Se tivessem
traduzido "Whistler's Mother" por "mãe do assobiador", em vez de "mamãe
assobiadora", apenas uma mancada teria sido cometida. Desgraçadamente,
em matéria de defeitos, nossa TV paga não se contenta com menos.

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado n'O Estado
de São Paulo, no dia 15 de março de 2008.

http://www.digestivocultural.com/ensaios/ensaio.asp?codigo=247

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