sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Mágicos das contas - Míriam Leitão: O Globo

Mágicos das contas

O governo Lula está produzindo o maior retrocesso na História recente
do país na transparência das contas públicas. Ontem foi um dia de não
se esquecer. Dia em que o governo fez a mágica de transformar dívida em
receita. E assim produziu o maior superávit primário do país em
setembro, quando, na verdade, o Tesouro teve um déficit de R$ 5,8
bilhões.

O passo a passo do governo nessa confusão é o seguinte: 1) o Tesouro
emitiu dívida no valor de R$ 74,8 bilhões. 2) transferiu uma parte, R$
42,9 bilhões, diretamente à Petrobras, para subscrever as ações da
empresa. 3) entregou o resto, R$ 31,9 bilhões, ao BNDES e ao Fundo
Soberano. 4) BNDES e FSB repassaram esses títulos à Petrobras para
pagar pelas ações que também compraram. 5) a Petrobras pegou todos
esses títulos que recebeu e com eles pagou a cessão onerosa dos barris
de petróleo do pré-sal. 6) o governo descontou o dinheiro que gastou na
subscrição e considerou que o resto, R$ 31,9 bilhões, era receita.

De acordo com o secretário do Tesouro, Arno Augustin, isso é igualzinho
à receita de concessão que o governo Fernando Henrique registrou no seu
superávit primário quando vendeu a Telebrás. Não é não. Aquele momento
o governo estava vendendo ativos e recebendo em dinheiro. Agora ele
está transferindo petróleo, ainda não retirado, e recebendo de volta
títulos da dívida que ele mesmo emitiu. Se fosse igual à receita de
privatização, como Augustin fala, por que então o governo precisou que
o dinheiro passasse pelo BNDES? É para que na passagem acontecesse a
mágica de o título de uma dívida do Tesouro virar receita.

O secretário disse que "essa ideia de que o BNDES participou por causa
do superávit é errada." Segundo ele, se o BNDES não entrasse o Tesouro
perderia participação na Petrobras. Conversa. O governo não fez
diretamente porque ficaria mais explícito o truque de fazer sopa de
pedra.

Para completar a confusão, os R$ 24 bi em títulos que foram para o
BNDES — o resto dos R$ 31,9 bi foi para o Fundo Soberano — entraram na
conta da dívida pública bruta, mas não na dívida líquida porque o
governo alega que é "empréstimo" e um dia o BNDES vai pagar. Portanto,
a dívida líquida não sobe, apesar de o governo ter se endividado. Foi
assim com outros R$ 180 bi em títulos transferidos para o BNDES.

O governo está desmoralizando os indicadores de superávit primário e
dívida líquida. Pelos números, está tudo bem: superávit na meta e
dívida com tendência de queda.

Maílson da Nóbrega acha que o governo não está apenas fazendo mágica,
está destruindo a transparência e a solidez das estatísticas do país
pelas quais vários governos trabalharam:

— Eles produziram artificialmente receitas públicas para simular um
superávit inexistente, que não resulta de esforço de austeridade
fiscal. Além disso, zombam dos analistas. Será que acham que
jornalistas, economistas, consultores não perceberam a manobra? Esse
truque não tem fim, porque eles podem agora vender petróleo futuro e
dizer que é receita.

O assunto "contas públicas" é considerado o mais árido da economia. Mas
quanto mais transparentes forem as contas mais capaz é a sociedade de
saber o que o governo está fazendo com o dinheiro coletivo e mais poder
tem de influir no destino dos recursos. A névoa nas contas públicas
retira esse poder.

Esse não é o primeiro truque, é apenas o mais extravagante. Em agosto
do ano passado, a MP 468 permitiu que o governo usasse depósitos
judiciais como receita. Contribuinte que entra na Justiça discutindo a
legalidade de um imposto tem que depositar a quantia contestada. Esse
valor pode ser do governo, ou não. Mas pela MP, R$ 5 bi entraram como
receita em 2009 e R$ 6,4 bi, em 2010.

No final do ano passado, outra MP, a 478, permitiu ao Tesouro vender
antecipadamente os dividendos que tem a receber de estatais e empresas
de economia mista. O BNDES comprou e repassou ao Tesouro R$ 5,2 bilhões
que ele teria de dividendos da Eletrobrás.

O governo decidiu excluir os investimentos do PAC da contabilidade das
despesas. Alguns gastos já estavam excluídos da conta porque estavam no
Plano Piloto de Investimentos. Só que para entrar no PPI o investimento
tem seguir várias regras e ter metas de desempenho. O governo fez o PPI
perder suas qualidades e enquadrou o PAC na mesma brecha fiscal. Na
série estatística está registrado que o governo cumpriu a meta. Só
cumpriu por manobras assim.

No governo militar inventou-se uma fórmula que criava dinheiro. Era a
conta conjunta entre Banco Central e Banco do Brasil. O governo mandava
o Banco do Brasil pagar e depois pegar no BC. Assim surgiu o "orçamento
monetário", uma espécie de orçamento do B no qual cabiam todas as
despesas. Essas e outras maluquices deixaram uma montanha de dívida não
contabilizada. O governo Fernando Henrique tirou as dívidas do armário
e pôs na conta.

Foi com mágicas como a do orçamento monetário que o Brasil produziu uma
inflação alta, longa e que virou hiperinflação. Já vimos esse filme,
morremos no final. O problema é que quando chega o final, quem fez o
mal não está aí para responder por ele. --
http://oglobo.globo.com/economia/miriam/post.asp?cod_post=335905


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