sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

"Mas é só um pouquinho"...

URL: http://gabinetesoninha.blogspot.com/2010/02/mas-e-so-um-pouquinho.html


Eu não gosto de flagrar um "pobre coitado" cometendo uma infração ou um crime. Mas não posso deixar passar todo flagrante de pobres coitados.

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Quando um rapaz tentou levar meu celular - e, depois de 10 minutos de conversa, ele concordou em ficar com R$35,00 e deixar o celular comigo - eu tive dó. Quando, dias depois, eu o vi novamente, na mesma esquina, eu tive medo, muito mais medo do que da primeira vez. Ele escapou. Mais algum tempo se passou e ele foi pego. Fui chamada à delegacia para o reconhecimento. Soube que não era sua primeira passagem; já tinha cumprido pena. Fiquei aliviada por sua detenção, ao mesmo tempo deprimida. Depois fui ao Fórum Criminal da Barra Funda, estive com ele diante de um juiz e o vi careca, cabisbaixo, com sua camiseta branca e calça bege. Parece que pegou 5 anos. Não fiquei feliz.

Mas ele me apontou uma faca em uma rua deserta. Eu me assustei mas não me desesperei; quantas outras mulheres ele ameaçou? Quantas mães ficaram desesperadas ou aflitas por suas filhas, intranquilas se elas demorarem a chegar em casa? Quantas senhorinhas deixaram de sair à rua à noite, tem medo das sombras, se desgostaram do mundo em que vivem?

Eu posso ter dó, não posso deixar para lá.

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Hoje à noite montamos tocaia perto de um ponto viciado de entulho, como parte de uma operação conjunta entre Polícia Civil Ambiental, Polícia Militar e as 31 Subprefeituras. Montamos várias delas todas as semanas, mas este é um aperto maior, coordenado. Objetivo: deter infratores em flagrante. Pegar quem despeja lixo, entulho e bagulhos no lugar errado. E desencorajar todos os demais.

Queríamos especialmente os grandes infratores; os caçambeiros ilegais, os caminhões basculantes de grande porte. Gente que faz disso um grande negócio. Gente que não raro é violenta.

Enquanto nossa equipe esperava em um ponto estratégico, perto de uma área muito castigada, um funcionário da Subprefeitura telefonou: "Peguei um caminhão aqui no Alto da Lapa"! Eu ainda nem tinha me juntado à equipe; pensando em uma longa vigília, estava em casa preparando um lanche.

As viaturas da polícia correram para lá. Logo depois, eu cheguei. A cena era triste - um caminhãozinho e meia dúzia de pobres coitados. Tinham acabado de descarregar papelão, plástico e outros restos de embalagem em uma ilha de trânsito, quase debaixo da placa de "Proibido Despejar Entulho".

A placa foi colocada ali exatamente por ser aquele um ponto viciado. Um lugar em que as pessoas se acostumaram a deixar seus restos se amontoando até que alguém recolha.

Eu tive dó. Mas não posso ser leniente com o dono do caminhãozinho porque ele não tem uma carreta e caçamba; ele estava fazendo algo errado. E não é possível que não tivesse a menor noção de que estava errado... Por que foi até uma ilha no meio de uma rua meio deserta no Alto da Lapa com seu caminhãozinho? Quantas vezes ele já fez isso?

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A repórter da Folha veio falar comigo:

"O que foi que ele fez de errado?"
"Depositou lixo na via pública".

"Onde ele devia ter depositado?"
"Como é material reciclável, podia ter deixado em um Posto de Entrega Voluntária. Podia ter levado a um Ecoponto. Podia ter levado a um aterro particular. O que não podia era deixar na rua".

"Mas muita gente deixa, até na minha rua, porque imagina que alguém vai pegar. Olha, aquela kombi ali atrás [apontou] já ia pegar".
"A gente "imagina", mas e se ninguém pegar? Fica aí, se acumulando, vira uma montanha. E a Lei de Limpeza Urbana, que é muito extensa, muito rigorosa quanto a lixo no espaço público, diz que não se pode fazer separação de lixo na via pública. Porque senão o cara vem aqui e pega o que tem valor econômico para ele e larga o resto na via pública. Não pode. Não é assim que se faz".

"Vem cá, não é um exagero isso tudo, não? Polícia, esse aparato todo, por causa de tão pouco?"
"Claro que tem infratores maiores que ele. Mas ele cometeu uma irregularidade e a gente não pode deixar passar. Parece pouca coisa, não tem tanta importância, mas ele vem e deixa essa pilha, depois vem outro e deixa um sofá, um vaso sanitário, entulho, lata de tinta, galão de gasolina..."

(E quando a gente monta um aparato, não sabe quem vai aparecer, oras. Às vezes você para um carroceiro e ele puxa uma faca - já aconteceu. Você aborda um motorista e ele puxa uma arma - também já aconteceu. Não comigo, mas com funcionários e com moradores. Apareceu um caminhãozinho; a gente faz o que, chama o esquadrão mirim?)

(E se a Folha vir meia dúzia de papelões largados em uma ilha no meio da rua, vai: a) deixar pra lá porque "é pouquinho, o coitado nem é um grande infrator" ou b) vai fazer uma foto de capa para dizer que a prefeitura não limpa nada?)

"E aquele lixo ali [apontou 3 ou 4 sacos de lixo amarelos que estavam em um canto da ilha]? Do ponto de vista da enchente, isso é até pior, a gente vê saco amarelo desses entupindo boca-de-lobo..."
"O problema do lixo no lugar errado não é só o da enchente, e são coisas diferentes. Uma coisa é você recolher o lixo que já está na rua todo espalhado, acondicionar e colocar em um lugar até que o caminhão recolha. Se esse saco ficar na rua além do horário, a gente tem como verificar e multar a empresa. Mas pode acontecer o infortúnio de o lixo estar no lugar certo, na hora certa, cair uma tempestade e arrastá-lo. Só que é completamente diferente o serviço de coletar o lixo da rua e você vir e despejar lixo na rua".

Enfim, é a Folha. Tive algumas ideias para títulos folhísticos: "Prefeitura e polícia apreendem 500g de papelão"; "Operação Caça Entulho fracassa na Lapa"; "Prefeitura ignora lixo "oficial" e pune pequeno infrator".

Ou quem sabe sou só eu de mau humor, mas duvido.

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O caminhãozinho foi apreendido e recolhido ao pátio da Subprefeitura e está sendo lavrado o Termo Circunstanciado. O infrator foi tratado com respeito e cortesia, mas quase morreu de susto quando foi abordado pelo carro da apreensão. Depois de pagar as multas e regularizar a situação do veículo, poderá recuperá-lo. Para, espero, nunca mais despejar nada na via pública - mesmo que seja "pouquinho", mesmo que seja aproveitável por alguém que talvez venha buscar, mesmo que saiba que, mais dia menos dia, alguém vai ter de ir lá retirar.

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Terminei o texto acima em uma Lan House na Augusta pouco depois da meianoite, enquanto meu pessoal fazia o TC na Delegacia da Polícia Civil Ambiental. Reli agora e mudei algumas coisas.

De lá. fomos para o Jaguaré. Looonga história. Conto amanhã. Pra encerrar o dia:

- O motorista do caminhãozinho, na saída da delegacia, disse que vai continuar fazendo a mesma coisa, porque na opinião dele não fez nada de errado.
- Na volta pra casa às cinco da manhã vi uma porção de sacos amarelos nas calçadas. Que lindos, passaram a noite lá.
- Fechamos um bota-fora clandestino e reincidente. A repórter da Folha descreveu o lugar assim: "Parece Bagdá". Depois de vários bombardeios. Mas o dono defendeu seu negócio: "Eu faço isso para ajudar a cidade. Se o entulho não vier para cá, vai para onde? Para a rua. A prefeitura não tem aterro, os que existem não são suficientes".

É como dizer "Eu fiz uma escolinha infantil aqui no galinheiro. A prefeitura não tem creche pra todas e nas escolas particulares também não tem vaga, então eu faço um bem pra cidade porque recebo as crianças aqui". Ou pense em outras analogias porque são fáceis.

Amanhã eu juro que eu conto.





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