Aiuri Rebello
Em 1990, para que a recém-criada Fundação José Sarney tivesse uma sede à altura do maranhense que acabara de deixar a Presidência, o governador João Alberto de Souza, agregado da Famiglia, doou ao patriarca o Convento das Mercês. Construído em meados do século 17 sob a supervisão do padre Antonio Vieira, a reliquía histórica e arquitetônica incrustada em São Luiz abrigou a Ordem dos Mercedários até 1905, quando passou ao controle do governo estadual. Na semana passada, a abjeção consumada há 21 anos por João Alberto, hoje senador pelo PMDB, foi repetida em escalada ampliada pela governadora Roseana Sarney: controlada pela filha do presidente do Senado, a Assembleia Legislativa aprovou a estatização da Fundação José Sarney, rebatizada de Fundação da Memória Republicana Brasileira.
O Convento das Mercês já havia sido reincorporado ao patrimônio público em 2009, depois que a Justiça considerou ilegal a doação do prédio. Como a fundação está oficialmente extinta desde junho passado, foram estatizados, na prática, um rombo financeiro ainda por calcular, as despesas com a manutenção (R$ 60 mil por mês), pendências trabalhistas, suspeitas de desvios de verbas, um balaio de convênios irregulares, dois processos e o local assinalado por uma lápide onde Sarney pretende ser sepultado.
O patrimônio inclui “documentos históricos” relativos ao período em que Sarney foi presidente ─ atas de reuniões com ministros, pronunciamentos, entrevistas, anotações e outros papéis ─ obras de arte e uma biblioteca, além da estátua de bronze em tamanho natural que mostra Sarney lendo um livro num banco de jardim. Na justificativa do projeto, examinado e aprovado em menos de uma semana, Roseana capricha nos contorcionismos para transformar culpados em vítimas ─ e apresentar como gesto generoso mais uma prova da ganância dos donos da capitania hereditária.
"Lamentavelmente, a história da fundação tem sido marcada por constantes crises financeiras, haja vista que ela não dispõe de fontes públicas de financiamento para a sua manutenção, valendo-se, até agora, de assistemáticas contribuições de cidadãos e empresas privadas, insuficientes para custear o seu funcionamento", choraminga um trecho do palavrório. "Isso é a perpetuação de um privilégio com dinheiro público”, replicou o deputado Marcelo Tavares (PSB-MA), líder da oposição na Assembleia. “Num estado tão carente como o Maranhão, estão socializando todos os custos e prejuízos desse absurdo", completou Tavares.
Depois de devolvido ao patrimônio público, o Convento das Mercês continuou cedido à Fundação José Sarney, que em 1990 se comprometeu formalmente a cuidar do prédio. A promessa nunca foi cumprida, comprovam os numerosos sinais de deterioração e parte do edifício que ameaça virar ruína. Em 2010, arcos de sustentação no pátio interno tiveram que ser escorados com vigas de madeira. O acervo é castigado pelo mofo e pela humidade. Reflexo do quadro de abandono, o website da fundação está fora do ar e ninguém atende às chamadas telefônicas.
Em 2009, as contas atrasadas de água, luz e telefone somavam cerca de R$ 100 mil. No começo de 2010, o Ministério Público do Maranhão acionou o governo por ter feito dois repasses irregulares à fundação no valor de R$ 400 mil. Em janeiro deste ano, o Tribunal de Contas da União acatou denúncia do Ministério Público Federal sobre o desvio de R$ 500 mil de uma verba de R$ 1,3 milhão proveniente de convênios firmados com a Petrobras. O esquema foi descoberto em 2009. Em nota, o governo do Maranhão jurou na semana passada que todas as dívidas foram quitadas. Também informou que não há data marcada para a abertura da instituição aos maranhenses que pagaram a conta.
Em vez de festejar sem ruído o socorro ilegal, Sarney resolveu provar que o errado está certo. “Vejo nessa reação, reunidos, todos aqueles defeitos que movem o ódio político: a inveja, a burrice e a ingratidão”, irritou-se. “É injusto esse debate de alguns idiotas sobre uma das maiores obras de amor e benemerência ao Maranhão que eu fiz: doar ao povo do Maranhão um patrimônio, que os outros presidentes venderam, do meu valioso arquivo de mais de um milhão de documentos, três mil peças de museu de obras de arte e uma biblioteca de mais de 30.000 livros, muitos raríssimos que acumulei ao longo de minha vida. E o fiz com grandeza, amor e desprendimento".
Não foi por grandeza, amor e desprendimento que o senador ganhou da turma que comanda o apelido descoberto pela Polícia Federal durante a Operação Boi Barrica. Virou Madre Superiora pelo que fez e desfez enquanto foi o dono do convento.
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