segunda-feira, 23 de agosto de 2010

‘Beleza é Marina’

URL: http://www.minhamarina.org.br/blog/2010/08/5177/


Leia abaixo artigo de Caetano Veloso publicado na edição deste domingo (22) do jornal “O Globo”:

Reclame

Achei que Serra ia perder quando o vi com a Sabrina Sato. A esta altura da campanha, isso parece ter sido há muito tempo. Ele dava uma de cafajeste: tentava parecer informal, igual a todo mundo, “popular”. Esboçava, de modo desagradável, desmentir a fama de sério, de acadêmico. Tentava parecer o que não é. Bem, talvez ele seja mesmo cafajeste, mas não o é como homem público. Via-se ali já o equívoco de querer parecer grosso como Lula. Mas Lula é grosso do modo mais chique que pode haver. Seus erros de português, suas metáforas cafonas, mesmo suas caneladas imperdoáveis em assuntos internacionais são a glória do Brasil. E, apesar de considerar de fato imperdoáveis falas como as respostas sobre os dissidentes cubanos, não usei a palavra “glória” aqui com nenhum traço de ironia. Que o Brasil tenha eleito e aprove um presidente de origem humilde e pouco letrado é prova de que queremos mover-nos socialmente e de que não somos dominados por preconceitos linguísticos.

Mas Serra representaria todo o espectro da sociedade brasileira que, além de incluir os que têm preconceitos linguísticos, conta com muita gente que simplesmente está cansada do ideologismo desavisado dos que apoiam tudo do PT, do sintoma de regressão que representa o aspecto populista do culto a Lula e do fisiologismo que é desenfreado porque serve ao grupo que supostamente quer o bem do povo. Serra seria o homem sério, o ex-ministro da Saúde que demonstrou competência e coragem. Sua origem humilde poderia ser sempre relembrada, mas para dizer (como Marina pode, com muito mais razão) que vir da pobreza não resulta sempre num mesmo estereótipo. Serra deveria ter-se oposto claramente a Lula, reafirmando-se como o homem intelectualizado que é, como a alternativa nítida ao lulo-petismo. Mas já se esboçava, na cafajestada com Sabrina, o “Zé” do horário gratuito.

Sou baiano, mas não sou publicitário. Dos sambas obras-primas de Caymmi que eram ao mesmo tempo jingles turísticos de Salvador nos anos 40 ao hilário hino do carnaval axé chamado “We are Bahia”, o baiano mostra que tem pendor para o reclame. Nos anos 70, meu irmão Rodrigo foi a Minas. Voltou com brados de protesto: “Minas tem muito mais arquitetura bonita do que a Bahia, as igrejas e as comidas são mais requintadas; se os mineiros fossem espalhafatosos como os baianos, não dava nem para entrarmos no páreo.” João Santana é meu colega (foi letrista do Bendengó, de que Gereba era a cabeça musical) e meu camarada desde o final dos 70. Todos o chamavam de Patinhas, por causa do personagem de Walt Disney. Ele não tem nenhuma parecença física com o pato milionário. Seus amigos antigos devem ter visto outras semelhanças entre ele e o velhote dos cifrões. Sempre me fascinou o verso final de uma canção sua: “E haverá deuses na Terra e um homem no céu.” O próprio Tropicalismo (primo da arte pop e irmão de Godard) usava elementos da publicidade. Houve quem maldosamente julgasse tratar-se de pura jogada mercadológica. Eu próprio pensava o contrário, de modo que me recusei sempre a fazer anúncio ou licenciar canções minhas para tal. Então minhas penadas sobre campanha eleitoral são essencialmente amadorísticas.

Por que comento algo ligado a elas, então? Porque gosto de entrar nos assuntos que fazem a conversa da cidade. E porque sempre suponho que algo de minhas percepções pode produzir sutis diferenças. Gosto de pertencer – e meu pertencimento ao Brasil é algo de grande importância para mim. Não é nacionalismo. Em Santo Amaro, aos 17 anos, eu me dizia sueco. Gostava de saber que no país escandinavo uma mulher casada que tivesse um eventual caso extraconjugal não só não seria apedrejada: ela simplesmente conversava sobre o caso com o marido, e ambos procuravam atravessar o ciúme e decidir seguir juntos ou separar-se; amava que as meninas pudessem ter experiências sexuais com namorados ou amigos sem que isso lhes destruísse a vida; que a diferença entre os mais pobres e os mais ricos fosse mínima. No Brasil, esta ainda é obscena; a “legítima defesa da honra” só foi descartada quando eu já tinha um filho grande; e só de pouco tempo para cá as meninas podem trazer seus namorados para dentro de seus quartos. Eu ainda me sinto um estrangeiro. Não me identifico com a corrupção cordial nem com a hipocrisia racial. Mas meu compromisso com fazer o Brasil – e não qualquer outro lugar – modificar-se profundamente para tornar-se ele mesmo é talvez o que mais me move. As conversas de apagar a ideia de estado-nação me soam fora do tempo. Servem a outras coisas que não ao que fingem servir. Servem a nações hegemônicas ou a internacionalismos de classe que só sabem produzir nações ainda mais opressoras. Já eu quero que tudo mude. Por isso para mim conta se Serra foi cafa.

Marina disse certo sobre Lula e Dilma: “O Brasil não precisa ser uma sociedade infantilizada. Querem infantilizar os brasileiros com essa história de pai e mãe.” O Brasil não precisa. Mas ainda se presta a isso. Lula é pai. Dilma não tem nada de maternal. Mas é a mulher dele. Ele é que a nomeia mãe. A vitória dela será dele. Mas não apenas ele tem mais crédito do que débito com o Brasil com que eu sonho: também ela pode ser mais técnica do que mãe quando agarrar o poder. Em vez de temer ser o antiLula, Serra deveria marcar sua diferença. Podia não vencer, mas daria medidas a Dilma. Beleza é Marina.

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