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Celso Lungaretti*
O Conselho Nacional para Refugiados Políticos não considerou como tal o italiano Cesare Battisti, deixando o caminho desimpedido para o Supremo Tribunal Federal determinar sua extradição, o que dificilmente deixará de fazer.
Entre a extradição e a pena de 30 anos de detenção – praticamente uma condenação a morrer na prisão, para um homem de 53 anos de idade, que tem levado uma vida de muita dor e sofrimento – a melhor, talvez única, possibilidade de salvação seja a decisão do ministro da Justiça Tarso Genro, a quem a defesa de Cesare Battisti acaba de recorrer.
Em último caso – ou seja, uma negativa de Tarso Genro e a decisão contrária do STF - ainda caberia um apelo ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Mas, da última vez em que foi chamado a tomar uma decisão humanitária, Lula ficou insensível à greve de fome de D. Flávio Cappio. Se nem o risco de vida que o bispo corria foi suficiente para comovê-lo, é melhor não depositarmos nele nossas esperanças.
Trata-se de um caso em que a frieza da lei conflita com o espírito de Justiça, que inspira ou deveria inspirar nossas ações neste sofrido planeta.
Com vinte e poucos anos, Cesare Battisti pertenceu a um grupelho de esquerda radical na Itália, versão em miniatura das famosas Brigadas Vermelhas. É o que relatou em carta ao Conare, o qual permaneceu cego e surdo ao seu apelo desesperado.
"Fui membro do PAC, mas nunca pratiquei atos de violência... A verdade é que eu já havia publicamente renunciado à luta armada quando da morte de Aldo Moro. Tão logo percebi o caminho pelo qual a esquerda radical italiana poderia estar indo, fui radicalmente contra e cheguei mesmo a dizer a meus companheiros minha discordância."
Havia uma imensa frustração entre os idealistas que tentaram e não conseguiram mudar o mundo em 1968 e anos subseqüentes.
Nos países prósperos da Europa, parecia mesmo que, como o filósofo Herbert Marcuse escrevera, a combinação de uma situação de conforto material com a atuação atordoante dos meios de comunicação de massa fechara totalmente as brechas através dos quais os homens poderiam chegar ao pensamento crítico.
Então, na segunda metade da década de 1970, uns poucos tentaram abrir novas brechas com dinamite. Foi um terrível e trágico erro histórico.
Por mais impermeáveis às mudanças que se apresentem em determinado momento, as democracias dão espaço a quem quer convencer a cidadania de que a realidade pode ser alterada para melhor. O jeito é, pacientemente, perseverar no trabalho de formiguinha até que a situação mude.
A teoria do homem unidimensional de Marcuse (bem como a do fim da História de Fukuyama, que veio depois) dissecava o momento que a produziu, mas não levava em conta a dinâmica da História, que teima em direcionar-se para novos e surpreendentes caminhos.
Por exemplo, a recessão que fustigará a economia mundial em 2009 (e sabe-se lá mais quanto tempo) e as catastróficas conseqüências das alterações climáticas (que já começam a nos assolar) ensejam novas possibilidades de atuação aos que querem despertar a consciência coletiva para o fato de que o capitalismo hoje ameaça a própria sobrevivência da espécie humana.
A sofreguidão, entretanto, tornou-se uma tendência avassaladora no mundo moderno. Muito mais entre os jovens. E mais ainda entre os idealistas, que exasperam-se por terem uma visão muito nítida das mazelas do seu tempo e de como poderiam ser erradicadas, mas se chocam com a indiferença e o egoísmo da maioria bovinizada.
Battisti, jovem e idealista, acreditou que devesse trilhar um desses atalhos para a transformação da sociedade, já que a estrada principal estava bloqueada. Pagou caríssimo por isso.
Depois que as Brigadas Vermelhas tomaram a decisão inaceitável e inqualificável de executar Aldo Moro, criou-se um estado de ânimo fascistóide na Itália.
Semelhante, por exemplo, aos que levaram os EUA a lincharem pelas vias legais tanto Sacco e Vanzetti quanto o casal Rosemberg, cujas inocências saltavam aos olhos e clamavam aos céus.
Foi em processo deste tipo, no qual se registraram verdadeiras aberrações jurídicas em detrimento dos réus, que Cesare Battisti acabou condenado por quatro homicídios cuja autoria ele nega.
"Hoje estou cansado. Se volto para a Itália sei que vou morrer. Embora nunca tenha matado ninguém, me acusaram de ter matado policiais com base em um depoimento de um 'arrependido' por delação premiada, que jogou a culpa por muitos atos praticados por ele próprio em mim... Nunca pratiquei atos de violência contra quem quer que seja, e não há testemunha presencial que me acuse de tal prática", afirma Battisti.
O italiano conseguiu escapar da prisão do seu país e leva existência de judeu errante há quase três décadas, perseguido, acossado, finalmente preso no Brasil, a pedido da Itália.
"Fugi para a França, e da França para o México, e do México para a França, e da França para o Brasil. A pé, de ônibus, de avião, de carro, enfim, da forma que fosse possível. Fugi cruzando territórios e fronteiras, que nem sempre eram a minha destinação original. Fugi muitas vezes pensando que nunca mais veria minhas duas filhas, meus amigos, minhas referências de vida."
Constituiu família, escreveu livros, reconstruiu-se, bem ao contrário dos que preferiram seguir o rumo insensato até o mais amargo fim, como Carlos, o Chacal.
Hoje, é um homem que, livre, não faria mal a uma mosca. Poderia, finalmente, viver em paz com seus entes queridos e continuar exercendo brilhantemente sua atividade literária. "Vim para o Brasil pois sabia do calor e do acolhimento que aqui receberia. Sabia também que o Brasil acolhe perseguidos políticos. Hoje tenho certeza que reúno condições de aqui trabalhar, de trazer minha família para perto, de estar ao lado de meus amigos que, mesmo vivendo do outro lado do Atlântico, nunca me deixaram só."
Que verdadeiro benefício a sociedade tirará do seu encarceramento por 30 anos, ou até a morte? Nenhum. O olho por olho, dente por dente, pertence à pré-história da humanidade. Mas, Battisti se debate numa dessas armadilhas da História, sem saída pelos caminhos legais.
Não cabe ao Brasil questionar a lisura da Justiça italiana ou o rancor vingativo com que a direita de lá, ao assumir o poder, exumou um caso esquecido e passou a perseguir implacavelmente um homem que não incomodava mais ninguém.
É em nome da clemência, dos sentimentos humanitários e do seu próprio passado idealista que Tarso Genro terá de agir, para salvar Cesare Battisti.
Quando Salvador Allende assumiu o poder no Chile, afirmou à militância que, para ela, jamais seria Sua Excelência, o presidente, mas sim o companheiro presidente. Morreu cumprindo a palavra.
Que Tarso Genro, seguindo os passos de Allende, aja agora como companheiro ministro - é o que dele esperam Cesare Battisti e os brasileiros que, como eu, conservam o idealismo e o espírito solidário, mesmo nestes trópicos cada dia mais tristes.
* Celso Lungaretti, 58 anos, é jornalista, escritor e ex-preso político. Mantém os blogs O Rebate, em que disponibiliza textos destinados a público mais amplo; e Náufrago da Utopia, no qual comenta os últimos acontecimentos.
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